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Elaine Arruda no Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, 2014 |
Por Armando Sobral
A Poucos Metros do Mercado do Sal
A poucos metros do Mercado do Sal, região
portuária às margens do rio Guamá, encontra-se a oficina Santa Terezinha,
empreendimento tradicional que há décadas oferece trabalhos em fundição, peças
de reposição de motor para barcos e serviços variados com placas e artefatos de
metal. Quem adentra o espaço depara-se com maquinários pesados enfileirados,
alguns funcionários dispersos e, com um pouco mais de atenção, o movimento
discreto de um grupo de jovens artistas manipulando grandes chapas de zinco nos
fundos do velho galpão; o visitante tampouco suspeitará o que os motiva a se
debruçarem sobre aqueles painéis metálicos cobertos de incisões. A Santa
Terezinha representa a primeira etapa desse insuspeito trabalho, as lâminas
ainda devem chegar à oficina A Reconstrutora em outro ponto da cidade, no
antigo bairro operário de Belém, o Reduto, onde finalmente desvelam-se: as
castigadas lâminas de zinco transformam-se em matrizes que impregnam longos
papéis com densos e vigorosos sinais convertendo-os em uma única estampa cuja
escala foi poucas vezes experimentada na gravura contemporânea. O trajeto é
significativo para a artista, proporciona o contato com atividades intimamente
associadas à cultura ribeirinha através das metalúrgicas artesanais; reavalia e
expande seus métodos de trabalho com a gravura em metal sem afastar-se dos princípios
que norteiam sua prática. Seu gesto anima uma saudável divagação sobre a
gravura e suas origens, ou a renovação de seus fundamentos através de um
retorno às origens - a gravura em metal surge nos ateliês dos armeiros e
prateiros medievais. Elaine vai ao encontro das oficinas navais e incorpora o conhecimento
e ferramentas dos funileiros aos processos diretos da gravura em metal;
apropria-se de seus equipamentos e produz gravuras em escalas monumentais apoiada
em uma rede de colaboração e compartilhamento de experiências – seu ato de
criação é uma ação coletiva.
A gravura sempre esteve associada à íntima
relação com a leitura. A partir dos anos 50, período marcado pelo surgimento do
movimento abstrato no Brasil e ruptura com o modernismo, Maria Bonomi imprime a
essa modalidade artística um caráter monumental; reage ao universo soturno da
gráfica expressionista com xilogravuras luminosas e coloridas em grandes
formatos – pode-se dizer, de maneira figurada, que retira a estampa da mesa e a
coloca na parede. Em certo sentido Elaine reage com imodéstia, porém sua
inquietação não contrapõe-se a um modo dominante de pensar e produzir a
gravura, sucede das potencialidades encontradas em seu campo de experimentação
material e das indagações ao impacto produzido pela paisagem. Seu ponto de
vista não é do observador apartado, do retratista das atmosferas distantes; desloca-se
para o centro dos acontecimentos. Sua experiência resulta de tal imersão , e o
corpo é o abrigo.
Procede de modo significativo, perfila
diversas placas de zinco e as ataca com ponteiras, machadinhas, fogo e ácido. Conduz
as ferramentas em movimentos enérgicos até a exaustão da matriz; perfura, corta
e risca o metal orientada pelo trânsito permanente de impressões mentais que
são transmitidas em ato. Não planeja a forma, prepara o campo para que o corpo
percorra em fluxo contínuo o extenso plano de gravação. Salto profundo e
radical que devolve à estampa toda a determinação do gesto.
Atualmente, suas gravuras encontram paridade
com a obra gráfica de outro jovem artista, Fabrício Lopes; ambos renovam o
caminho iniciado por Maria Bonomi há mais de cinquenta anos, em intensidade, escala e potência. Diante de
tamanho mergulho não deixamos de nos pronunciar: é potência, arrebatamento. Não
daria para ser diferente.
Belém, janeiro de 2014